Na minha sombra
guardo os meus tesouros:
a minha fortuna,
o meu amor,
a minha glória.
Toda a luz
nesse escuro lugar
da minha alma
repousa
e se contenta.
Na minha sombra
guardo os meus tesouros:
a minha fortuna,
o meu amor,
a minha glória.
Toda a luz
nesse escuro lugar
da minha alma
repousa
e se contenta.
Perto de ti,
nas tuas cercanias,
começa a eternidade.
Tão perto
que encontrar-te
será perder-me
para sempre.
Eu sei que os rios correm lentos. Porque, observando os rios lentos, reparo que eles são diferentes dos rios rápidos. E, observando os rios rápidos, reparo que eles são diferentes dos rios lentos. Mesmo aos meus olhos lentos, os rios rápidos correm rápidos, e sei que os rios lentos nos meus olhos rápidos permanecem lentos. E às vezes os rios lentos fazem-se rápidos, e os meus olhos rápidos vêem-nos rápidos e os meus olhos lentos vêem-nos rápidos. Porque eles são rios rápidos nas fases em que não são rios lentos, nas fases em que as suas almas de água não precisam de vagares a caminho dos seus destinos. E às vezes os rios rápidos são rios lentos, são lentos quando são lentos, e é por isso que os rios rápidos são rios lentos e os rios lentos são rios rápidos, rápidos quando são rápidos aos meus olhos rápidos e aos meus olhos lentos. E sei também que o carácter dos rios nunca se altera com as suas vicissitudes.
Amo-te hoje um pouco melhor do que te amei ontem, porque o meu amor de ontem sentia a falta do meu amor de hoje para ser perfeito. Mas não hei-de amar-te amanhã melhor do que te amo hoje, porque o meu amor de hoje não pode sentir a falta de um amor que ainda não tenho por ti.
O que direi das colinas inquietas que despem a imensa planície até à tua nascente de carne? Direi que são quentes e cheias e lentas e brancas - e que eu fujo, fujo delas, que me sabem a mãe e me retêm no berço.
Um de nós suicidou-nos,
meu amor,
teve a amabilidade
de nos extinguir.
Um de nós sofreu-nos,
chorou-nos
no desamparo aflitivo da alma.
Um de nós
reabriu todas as dores,
incendiou todas as feridas,
ferveu todas as lágrimas
que não nos quiseram os olhos.
Um de nós, meu amor,
revisitou-nos
o inferno doce
da nossa incerteza.
Decantou toda a angústia,
remexeu toda a tragédia,
apunhalou todo o suplício
que se debatia,
moribundo,
no terreiro da nossa batalha.
Um de nós venceu-nos,
expulsou-nos de dentro de nós,
terminou-nos,
ruiu-nos,
eliminou-nos do tempo,
do espaço, do vento,
fuzilou-nos
com tiros de fúrias e raivas,
imolou-nos
no nosso próprio fogo doente,
sim,
no nosso fogo arrefecido
porém quente,
naquele fogo sitiado
porém nuclear, porém medonho,
porém de tentáculos ardentes,
porém insano,
imoral,
esse fogo que nos fez,
que nos criou,
do qual saímos sempre cinzas,
sim,
esse fogo doido,
esse fogo apagado
porém vivo,
esse fogo bandido,
mortífero,
que se emboscava
no ventre exaltado
das nossas memórias
por pagar.
Um de nós
desceu ao arquivo morto
dos nossos actos primordiais,
dos nossos desejos intactos,
e perfurou um a um,
ávido,
os olhos inocentes
de todos os nossos sonhos de amor.
Um de nós cegou-nos,
teve a piedade
de nos escurecer
a morte,
a visão arrasadora da nossa indignidade,
da nossa perfídia,
da nossa queda livre
no chão seco onde se esboroam
os amantes que traem as suas almas.
Um de nós,
meu amor,
varreu-nos da história,
dissolveu-nos no nada,
devolveu-nos àquele lugar sagrado
onde, extremamente puros,
nunca existimos.
Por isso, meu amor,
um de nós,
hoje,
matou-nos.
Devíamos talvez ter adormecido um no outro, e enquanto dormíssemos, enquanto fôssemos inócuos, deixássemos que o tempo se esvaísse de nós. Porque passavas a vida a morrer-me, habituei-me a amar os teus longes olhos imersos nas trevas, enquanto assistíamos, quietos, ilúcidos, ao cortejo fúnebre do nosso amor. Devíamos talvez ter morrido um no outro, e enquanto morrêssemos, enquanto fôssemos cadáveres, deixássemos que o tempo se arrependesse de nós. Porque passava a vida a amar-te a morte, tu criaste o hábito de não me existires, serenamente dissimulada, enquanto assistíamos, quietos, ilúcidos, ao cortejo fúnebre do nosso amor. Devíamos talvez ter crescido um no outro, e enquanto crescêssemos, enquanto fôssemos vingando, deixássemos que o tempo tomasse conta de nós.
Dir-te-ia
que me levasses daqui
para longe, tão longe de ti,
se eu não fugisse de mim
para perto, tão perto daqui.
(Que nestas manhãs acordadas cedo
te ausentas do meu poema
e do meu corpo
para longe, tão longe
dos lugares comuns
ao nosso amor.)
Naquele tempo, os teus lábios frequentavam os meus beijos e éramos serpentinos, longos, intermináveis. Lembro-me às vezes de como te sabias minha, tão só minha como a pele dos meus lábios frequentes nos teus beijos. Naquele tempo, lembro-me às vezes, o desejo exilava-se nas metástases do nosso amor e era um passageiro frequente dos teus lábios nos meus beijos serpentinos, longos, intermináveis. Ah, como te sabias minha naquele tempo em que os teus lábios frequentavam as metástases do nosso amor. Ah, como morreram, frequentes, os teus lábios nos meus beijos. Como morreram longos e serpentinos, longos e intermináveis, naquele tempo.