Um de nós suicidou-nos,
meu amor,
teve a amabilidade
de nos extinguir.
Um de nós sofreu-nos,
chorou-nos
no desamparo aflitivo da alma.
Um de nós
reabriu todas as dores,
incendiou todas as feridas,
ferveu todas as lágrimas
que não nos quiseram os olhos.
Um de nós, meu amor,
revisitou-nos
o inferno doce
da nossa incerteza.
Decantou toda a angústia,
remexeu toda a tragédia,
apunhalou todo o suplício
que se debatia,
moribundo,
no terreiro da nossa batalha.
Um de nós venceu-nos,
expulsou-nos de dentro de nós,
terminou-nos,
ruiu-nos,
eliminou-nos do tempo,
do espaço, do vento,
fuzilou-nos
com tiros de fúrias e raivas,
imolou-nos
no nosso próprio fogo doente,
sim,
no nosso fogo arrefecido
porém quente,
naquele fogo sitiado
porém nuclear, porém medonho,
porém de tentáculos ardentes,
porém insano,
imoral,
esse fogo que nos fez,
que nos criou,
do qual saímos sempre cinzas,
sim,
esse fogo doido,
esse fogo apagado
porém vivo,
esse fogo bandido,
mortífero,
que se emboscava
no ventre exaltado
das nossas memórias
por pagar.
Um de nós
desceu ao arquivo morto
dos nossos actos primordiais,
dos nossos desejos intactos,
e perfurou um a um,
ávido,
os olhos inocentes
de todos os nossos sonhos de amor.
Um de nós cegou-nos,
teve a piedade
de nos escurecer
a morte,
a visão arrasadora da nossa indignidade,
da nossa perfídia,
da nossa queda livre
no chão seco onde se esboroam
os amantes que traem as suas almas.
Um de nós,
meu amor,
varreu-nos da história,
dissolveu-nos no nada,
devolveu-nos àquele lugar sagrado
onde, extremamente puros,
nunca existimos.
Por isso, meu amor,
um de nós,
hoje,
matou-nos.